top of page

Psicocirurgia: um Bisturi Corta a Mente

Autora: Suzana Herculano-Houzel - Professora-adjunta do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro


Se o cérebro é a origem ou um mero intermediário das ações da mente, ainda há quem duvide que a Neurociência consiga determinar. Mas, seja o cérebro seu criador ou apóstolo, quando a mente não vai bem é ele o culpado mais provável. Dessa lógica, combinada a uma descoberta com a experimentação animal, nasceu no começo do século 20 a psicocirurgia.


Intervenções cirúrgicas para tratar distúrbios mentais não são uma invenção recente. Trepanações eram realizadas no Egito Antigo há quatro mil anos, e depois na Idade Média e no Renascimento, como mostram quadros pintados nessas épocas. Nos séculos 17, 18 e 19, as doenças mentais eram “tratadas” aplicando-se à cabeça remédios variados como água fria e “contrairritantes”, substâncias diversas que criavam pústulas que deixariam escapar do cérebro os “vapores negros” da doença. No começo do século 20, o uso terapêutico da febre induzida entrou em voga, e rendeu até o prêmio Nobel de 1927 ao austríaco Wagner von Jauregg (1862-1930), que tratava a “demência paralítica” — provavelmente sífilis do sistema nervoso — com a inoculação do protozoário causador da malária.


A invenção do século 20, a esse respeito, foi a destruição de regiões do cérebro para aliviar distúrbios psiquiátricos severos e intratáveis. Chamava-se “psicocirurgia”. Ou, para seus partidários, “cirurgia psiquiátrica”. E para seus oponentes, “mutilação cerebral com o objetivo de facilitar o trato com pacientes psiquiátricos, tomando-os emocional e intelectualmente obtusos”.


O responsável pela disseminação da psicocirurgia como tratamento psiquiátrico foi o neurocirurgião português Egas Moniz ( 1874-1955). Não foi ele, no entanto, o primeiro a operar o cérebro humano com esse objetivo: o suíço Gottlieb Burckhardt o fizera no fim do século 19, e foi forçado a interromper suas operações. Mas na década de 1930 o cenário era outro. A psiquiatria vinha se mostrando incapaz de tratar distúrbios mentais graves. A teoria de Cannon-Bard recebia bastante atenção, argumentando que o córtex cerebral, e os lobos frontais em particular, exerciam controle sobre os centros do tronco encefálico, responsáveis pelas emoções primitivas. Egas Moniz era um neurologista muito respeitado, já com 61 anos.


Embora o cirurgião português declarasse que a ideia lhe ocorrera antes, a passagem à prática certamente foi influenciada por um simpósio muito concorrido sobre os lobos frontais, realizado durante o Congresso Internacional de Neurologia em Londres, agosto de 1935. Os americanos Carlyle Jacobsen e John Fulton apresentaram dados de experimentos com a chimpanzé Becky, um animal agressivo que se tornara dócil após a ablação dos dois lobos frontais. Depois da apresentação, Moniz perguntou a Jacobsen e Fulton se esse procedimento poderia ser testado em humanos para o tratamento da ansiedade. Seu raciocínio era que as doenças mentais são causadas por “ideias fixas” cujos circuitos se encontram nos lobos frontais. Os palestrantes ficaram alarmados. Mas Moniz achou que a ideia era boa, e três meses mais tarde, em novembro, realizou a primeira operação, numa ex-prostituta sifilítica considerada psicótica. Moniz usou o leucótomo, um instrumento para cortar as fibras da substância branca dos lobos frontais. Dois meses mais tarde, ele a declarou “curada”. O próprio Moniz cunhou o termo “psicocirurgia”, além da palavra “leucotomia”, que descrevia sua operação.


Do outro lado do Atlântico, o americano Walter Freeman (1895-1972), que também havia assistido a palestra de Jacobsen e Fulton, e seu colaborador James Watts (1904-1994) começaram a operar pacientes psiquiátricos já em 1936. Freeman acreditava que a “lobotomia”, sua versão do procedimento de Moniz, interrompia a conexão dos lobos frontais com os circuitos da emoção. Freeman e Watts foram os principais responsáveis pela popularização da lobotomia, que chegou a ser amplamente usada no Brasil. Freeman sugeria mesmo ensinar a psiquiatras o procedimento transorbital que eles desenvolveram (através do fino osso que forma a cavidade orbital do olho) para empregá-lo até mesmo “no consultório”.


Moniz recebeu o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 1949 — ano em que também recebeu quatro tiros de um paciente paranoico, não leucotomizado, e teve de abandonar a prática. Em breve, nos anos 1950, a psicocirurgia começou a declinar com a introdução do tratamento farmacológico da esquizofrenia com a droga clorpromazina, e o rápido desenvolvimento de outras drogas psicoativas, proporcionando um tratamento mais “ameno” em comparação à irreversibilidade e à destrutividade da psicocirurgia. Nos anos 1970, no entanto, voltou-se a falar da psicocirurgia. Cogitava-se sua aplicação como terapia permanente para criminosos. Em resposta, os estados da Califórnia e do Oregon, nos EUA, passaram leis restringindo seu uso.


A questão da psicocirurgia vai além das indagações acerca da sua eficácia. Ela pode ser eficiente tendo-se em conta seus objetivos — mas à custa de reduzir irreversivelmente o potencial criativo do paciente, e a sua capacidade de usufruir de experiências emocionais e intelectuais. Como se não bastasse a dificuldade de decidir pelo cérebro alheio, é preciso também considerar a utilização da psicocirurgia com fins “sociais” — seja para suprimir os ímpetos de um psicopata, condenando à morte parte de seu cérebro, ou controlar pacientes rebeldes nas instituições. Afinal, quem não tem seus momentos de rebeldia e desvario?

FONTE:

Livro: LENT, Roberto. Cem Bilhões de Neurônios? Conceitos fundamentais de neurociência. 2ª Edição. São Paulo: Editora Atheneu, 2010.


Posts recentes

Ver tudo

留言


Av. Com Videlmo Munhoz, 130 Sala3
Anhangabaú Jundiaí SP Brasil
13208-050
 +55 11 99173 8631
whatsapp-1.png
bottom of page