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LIVRO: O Oráculo da Noite

SIDARTA RIBEIRO é mestre em biofísica pela UFRJ, doutor em comportamento animal pela Universidade Rockefeller, pós-doutor em neurofisiologia pela Universidade Duke, professor titular de neurociência, fundador e vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN. Publicou mais de cem artigos científicos em periódicos internacionais.


Como dar sentido a tantos símbolos, a tamanha riqueza de detalhes? Como explicar a repetição tão fidedigna de enredo? O que dizer do surgimento e do desaparecimento tão repentinos dessa série onírica? Como lidar com pesadelos recorrentes que geram até medo de adormecer? Dar respostas a essas perguntas exige compreender as origens e funções do sonho.


Experimentamos durante a vigília — de dia ou de noite, mas de olhos bem abertos — uma sucessão de imagens, sons, gostos, cheiros e toques. Despertos, vivemos sobretudo fora da mente, pois nossos atos e percepções estão ligados ao mundo além de nós. E então, com maior ou menor periodicidade — de noite ou de dia, mas de olhos bem fechados —, entramos naquele estado de inconsciência em que a tela da realidade se apaga. Desse sono tão familiar e reparador pouco nos lembramos, e por isso é comum pensar que se trata de uma ausência completa de pensamentos. O sono se apresenta como uma não vida, uma “pequena morte” cotidiana, embora isso não seja verdade. Hipnos, o deus grego do sono, é irmão gêmeo de Tânatos, o deus da morte, ambos filhos da deusa Nix, a Noite. Transitório e em geral prazeroso, Hipnos é profundamente necessário à saúde mental e física de qualquer pessoa.


Algo muito diferente acontece durante o curioso estado de viver para dentro a que chamamos sonho. Ali reina Morfeu, que dá forma aos sonhos. Irmão de Hipnos segundo o poeta grego Hesíodo, ou filho de Hipnos segundo o poeta romano Ovídio, Morfeu leva aos reis as mensagens dos deuses e lidera uma multidão de irmãos, os Oneiros. Esses espíritos de asas escuras emergem a cada noite através de dois portões, um feito de chifre e outro de marfim, como morcegos em revoada. Quando cruzam o portão de chifre — que, quando adelgaçado, é transparente como o véu que recobre a verdade —, geram sonhos proféticos de origem divina. Quando passam pelo portão de marfim — sempre opaco mesmo quando reduzido a espessura mínima —, provocam sonhos enganadores ou desprovidos de sentido.


Se os antigos se deixavam guiar pelos sonhos, a intimidade dos contemporâneos com eles é bem menor. Quase todos sabem o que o sonho é, mas poucos se lembram dele ao despertar de manhã. O sonho em geral nos aparece como um filme de duração variável, muitas vezes de início indefinido, mas quase sempre levado até um desfecho conclusivo. Numa definição preliminar, o sonho é um simulacro da realidade feito de fragmentos de memórias. Dele participamos normalmente como protagonistas, o que não significa que tenhamos controle sobre a sucessão de eventos que perfazem o enredo onírico. Por atuarmos nele sem conhecer seu roteiro e direção, muitas vezes experimentamos surpresa e até mesmo euforia durante o sonho. Da mesma forma, é comum que o sonho encene situações de grande frustração ou decepção. Apesar de refletir as preocupações do sonhador, o curso do sonho é quase sempre imprevisível. A lógica dos eventos é fluida e errática em comparação com a realidade. A sucessão de imagens se caracteriza por descontinuidades e cortes abruptos que não experimentamos na vida desperta. Nos sonhos um personagem ou lugar pode se transformar em outro com incrível naturalidade, revelando o poder de transmutação das representações mentais. O encadeamento entrecortado dos símbolos determina um tempo caracterizado por lapsos, fragmentações, condensações e deslocamentos, gerando camadas de significado múltiplas e até mesmo díspares. O arco de possibilidades do sonho é vastíssimo, beirando o insólito, o inverossímil e o caótico. A interpretação de um sonho pressupõe a compreensão profunda do contexto real e emocional do próprio sonhador, e pode ser extremamente transformadora.

FONTE: Ribeiro, Sidarta. O Oráculo da Noite: a história e a ciência do sonho. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.



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